Do preconceito ao sucesso internacional: Gloria Perez relembra bastidores de ‘O Clone’

Amauri Terto
6 min readNov 23, 2020

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Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Mutilo Benício), protagonistas de “O Clone”; novela estreou em 20101, poucos dias depois do atentado de 11 de setembro.

O Clone, disponível na plataforma Globoplay desde outubro, foi um dos trabalhos de maior sucesso da autora Gloria Perez e um dos folhetins mais lucrativos da história da Globo. A novela — que tinha cultura muçulmana, clonagem humana e dependência química como principais temas — foi exportada para 101 países, premiada dentro e fora do País e chegou a ganhar um remake hispânico pela Telemundo nove anos depois da exibição original.

Mas nem tudo foi positivo na trajetória da novela que conta a complexa história de amor entre a muçulmana Jade (Giovanna Antonelli) e o brasileiro Lucas (Mutilo Benício). “O preconceito contra os dependentes químicos era bem forte. E, de início, esse preconceito voltou-se também contra a campanha anunciada. Talvez pela maneira como abordei o assunto, de modo mais realista”, recorda Gloria Perez em entrevista por e-mail ao HuffPost.

Para quem não se recorda, a novela mostrava também a história dos jovens Nando (Thiago Fragoso) e Mel (Débora Falabella), que sucumbiam à dependência química. O drama dos personagens serviu de pano de fundo para uma campanha contra drogas que causou desconforto nacional, mas também elogios, incluindo um do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Quase vinte anos após a primeira exibição da novela, Gloria Perez conta que seu fascínio pelas experiências no campo da genética não diminuiu. “Será que um dia não vamos mesmo envelhecer mais, como prometem alguns cientistas?”, questiona. Na entrevista, ela também fala sobre as críticas que seu trabalho mais recente, A Força do Querer (reexibida atualmente no lugar de Amor de Mãe), recebeu do público em 2017, reafirmando que não mudaria nada no elenco ou na trama.

“Acho muito interessante as reações passionais e às vezes até irracionais que as novelas despertam. Penso que, através delas, a gente pode constatar o quanto elas são capazes de mobilizar e o quanto o público exige ver-se representado nelas”, reflete.

HuffPost Brasil — O Clone foi visto como um projeto arriscado dentro da Globo. Além disso, poucos dias antes do primeiro capítulo ir ao ar, ocorreu o atentado de 11 de setembro, que impulsionou a islamofobia em todo o mundo. A senhora ficou insegura em algum momento com a história que estava propondo?

Gloria Perez — Em relação à história que tinha para contar, nenhuma insegurança. Eu vinha de uma convivência intensa com os muçulmanos do Cairo e do Marrocos, gente comum, gente do povo, e era sobre eles que eu queria falar. Extremistas existem em qualquer lugar do mundo. A emissora apostou junto. E deu certo.

A senhora costuma dizer que há personagens que ganham vida própria durante a construção da novela. Qual personagem teve essa característica na novela?

Todos eles. Depende da maneira como você constrói. Se você dá à personagem uma identidade, uma personalidade, objetivos e quereres próprios, não tem saída: ela ganha vida própria.

A senhora encontrou preconceito ao escrever O Clone, seja abordando a questão da genética, cultura muçulmana ou abuso de drogas?

Os muçulmanos tiveram aceitação imediata. O preconceito que enfrentei foi em relação à campanha contra as drogas. O preconceito contra os dependentes químicos era bem forte. E, de início, esse preconceito voltou-se também contra a campanha anunciada. Talvez pela maneira como abordei o assunto, de modo mais realista. Eu tinha frequentado muitas clínicas, conversado com dependentes e ex-dependentes, e pensei que, se queria fazer uma campanha pra valer contra as drogas, era a experiência deles que eu tinha que levar para a novela. Nada tem mais impacto que a experiência vivida. Então, a ideia foi inverter o slogan da campanha oficial da época: “a droga é uma droga”. Não, não era, diziam os que se afogaram nela. O início era uma lua de mel, e aí morava o perigo. Então a personagem fazia essa trajetória, de partir de uma experiência que parecia fascinante, para a escravidão, a dissolução moral, as perdas. Pensei que as pessoas que ainda não tinham experimentado e as que não conseguiam sair da dependência tinham de ouvir aqueles desabafos que eu ouvia, e que seriam menos impactantes se traduzidos em dramaturgia. Assim, os depoimentos dos dependentes reais entremeavam as cenas da personagem. Funcionou. A mensagem que eles, os reais, me pediram que passasse chegou ao público: eles não estavam nessa condição porque eram pessoas sem caráter. Era a droga que lhes dissolvia o caráter. Estavam doentes.

Clonagem humana virou tema de interesse da senhora também depois da novela? Acompanha os avanços de estudos e pesquisas desde então?

Sempre tive muito interesse pelas experiências da genética. Impressiona essa capacidade que o homem vem desenvolvendo de manipular a espécie, culminando nas quimeras. Será que um dia não vamos mesmo envelhecer mais, como prometem alguns cientistas? Não morreremos mais, porque haverá possibilidade de substituir tudo de que se compõe o mecanismo do corpo? Voltando às quimeras, daqui há muitos anos, ou poucos, sei lá… com que tipo de seres fabricados em laboratórios vamos cruzar na vida? É fascinante esse universo.

O Clone é uma novela brasileira premiadíssima e a quinta mais vendida na história. O que ela representa na carreira da senhora?

Sem dúvida nenhuma, um momento muito, muito feliz, por todo o reconhecimento que me trouxe, tanto aqui quanto no exterior, e pelo muito que contribuiu para a quebra de preconceitos contra muçulmanos e dependentes químicos.

A senhora chegou a assistir a versão hispânica da novela, El Clon, produzida pela Telemundo em 2010?

Foi uma adaptação muito bem sucedida. Participei das reuniões com eles, em Miami, junto com a Globo. Naturalmente tiveram que fazer muitas adaptações no que dizia respeito às personagens das histórias paralelas, porque era preciso adaptá-las à realidade local.

Acredita na ideia de que uma obra pode envelhecer bem ou não?

Penso que não envelheceu, os temas e os dramas vividos pelas personagens não são “de época”, estão aí.

Quais os prós e contras de escrever novelas cujos temas extrapolam a ficção e encontram conexão com o dia a dia da audiência?

Eu não saberia fazer diferente. Sendo obra aberta, acho que essa conexão é da natureza mesmo da novela.

A Força do Querer foi também um enorme sucesso, mas enfrentou várias críticas. A escalação de Fiuk, que não entregou interpretação à altura de seu personagem, foi muito comentada. A senhora também foi acusada de apologia ao crime e glamourização da bandidagem por conta da trama de Bibi Perigosa. A senhora é influenciada pelas críticas? Olhando em retrospecto, mudaria algo nessa novela?

Não, não mudaria nada em A Força do Querer. Você sempre vai ouvir acusações desse tipo quando aborda qualquer assunto cercado por muito preconceito. Falaram também que, com a trama de Ivana, pretendíamos induzir criancinhas à transexualidade. Não dá pra levar a sério. As Ivana e as Bibis são personagens da vida real, e é disso que um escritor fala, da vida real, seja pelos caminhos do drama, da comédia, da farsa. As cadeias estão cheias de Bibis, e foi isso que a novela tratou de mostrar. Por outro lado, acho muito interessante as reações passionais e às vezes até irracionais que as novelas despertam. Penso que, através delas, a gente pode constatar o quanto elas são capazes de mobilizar e o quanto o público exige ver-se representado nelas.

Por falar em críticas, como a senhora analisa a resposta do público aos temas que já abordou nas novelas até agora? Propor diálogo sobre o que é diferente se tornou mais difícil no Brasil?

Esse foi sempre um ponto comum a todos os meus trabalhos: propor, através do diálogo, a aceitação do diferente. O mundo é muito maior que nosso umbigo, mas as pessoas costumam reagir muito mal às diferenças. Até hoje escuto gente esclarecida falar das “culturas exóticas” que abordei em algumas novelas. Não é simples fazê-las enxergar que a outra cultura não é exótica, é apenas diferente da nossa.

Publicado originalmente no HuffPost Brasil em 7 de novembro de 2020.

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